Marxismo x Interseccionalidade
Jessica Cassel 20/09/2017
A crise do capitalismo deu
vazão a um sentimento de questionamento e a movimentos de massa por todo o
mundo. Dos Indignados da Espanha ao movimento da praça Syntagma na Grécia, e
mais recente as Nuit Debout [Noites em Claro] na França, jovens começam a agir
e desafiar o sistema capitalista. Como parte desse sentimento geral, nos
últimos anos também têm surgido um grande número de movimento espontâneos
contra a múltiplas formas de opressão que diferentes camadas da classe
trabalhadora experimentam sob o capitalismo.
Movimentos inspiradores como
o Idle No More[1], o Black Lives Matter, as manifestações por todo o mundo
contra a violência contra mulheres em 8 de março e partes do movimento
anti-Trump são apenas alguns exemplos recentes do desejo cada vez maior entre
os trabalhadores e a juventude de lutar contra a opressão e a discriminação. A
visão majoritária adotada pelas lideranças desses movimentos – que muitas vezes
fazem parte ou são influenciados pela esquerda acadêmica – é a da
“interseccionalidade”. Assim sendo, não é surpresa que uma camada da juventude
e dos estudantes que estão começando a se politizar nesses movimentos venha a
enxergar a opressão através desse viés. Mas o que significa a
interseccionalidade? Ela é útil para lutar contra a opressão? É compatível com
o marxismo?
A interseccionalidade é
comumente utilizada para explicar a existência de múltiplas e sobrepostas
formas de opressão que se interseccionam em diferentes configurações para cada
indivíduo, criando experiências e barreiras sociais únicas. A frase “é preciso
pensar interseccionalmente” é muito usada no movimento, implicando que toda
luta deva ser inclusiva e representativa dos indivíduos que experimentam
opressões sobrepostas e opondo-se à defesa estrita de um grupo ou forma de opressão.
Os marxistas concordam que
indivíduos ou grupos podem experimentar múltiplas formas de opressões
sobrepostas e simultâneas e que cada configuração apresenta um cenário único de
barreiras sociais. De um ponto de vista marxista, nenhuma forma de opressão
pode ser entendida ou superada isoladamente e a luta contra a opressão e a
exploração deve contemplar e incluir todas as camadas de oprimidos. Os
marxistas também se opõem firmemente a atitudes e comportamentos
discriminatórios e argumentam que eles só servem para nos dividir, impedindo a
unidade da classe trabalhadora necessária para alcançar sua emancipação. À
primeira vista, portanto, pode parecer que o marxismo e a interseccionalidade
são complementares. No entanto, se examinarmos mais a fundo a teoria subjacente
à interseccionalidade, veremos que seu entendimento da opressão e de como
combatê-la é bem diferente do marxismo. A interseccionalidade, apesar das
melhores intenções de muitos dos seus defensores, não pode explicar de maneira
adequada as origens das várias formas de opressão e, portanto, as soluções para
elas.
Nunca é demais dizer que o
marxismo luta contra todas as formas de opressão. Criticar uma abordagem ao
entendimento das opressões no movimento não equivale a ignorar a realidade das
múltiplas formas de opressão. Ao contrário, justamente porque é nosso objetivo
final acabar com todas as formas de opressão e exploração de uma vez por todas
é nosso dever fazer avançar as ideias e métodos que os trabalhadores e a
juventude precisam para alcançar sua emancipação. Esconder nossas diferenças
não faz qualquer bem ao movimento.
A “interseccionalidade” em
contexto
Para que se entenda as
limitações da interseccionalidade a partir de uma perspectiva marxista, nós
precisamos, é claro, considerar os aspectos principais da interseccionalidade
em si mesma e o contexto histórico em que ela ganhou popularidade. A ascensão
da interseccionalidade coincidiu com a derrota das ondas revolucionárias dos
anos 1960 e 1970, seguidas pela reação nos anos 1980 que culminou no colapso da
União Soviética.  Durante o subsequente
refluxo da luta de classes, as políticas identitárias ganharam força. As
políticas identitárias, que se desenvolveram naquele período, baseiam-se na definição
das pessoas a partir de características pessoais (etnia, sexo etc.) em vez de
sua classe ou ponto de vista político.
Isso foi utilizado pela
classe dominante para promover o avanço de elementos carreiristas pequeno
burgueses que são facilmente incorporados ao sistema capitalista. As políticas
identitárias são usadas pela burocracia do movimento dos trabalhadores e pela
classe dominante contra a esquerda e os que defendem a luta de classes dentro
do movimento. Essa orientação crescente em direção a eixos separados de
identidade e opressão resultou da incapacidade das lideranças trabalhistas,
socialdemocratas e stalinistas de liderar os trabalhadores rumo à superação do
capitalismo, o que teria erradicado as bases econômicas e sociais das várias
formas de opressão.
O stalinismo, em particular,
desempenhou um papel traidor. Enquanto a Revolução Russa de 1917 liderada pelos
bolcheviques sob o comando de Lenin e Trotsky teve grandes avanços para
mulheres, lésbicas, gays e nacionalidades oprimidas, a degeneração da União
Soviética sob Stalin fez com que muitas dessas conquistas fossem perdidas. O
isolamento e o atraso da União Soviética fizeram com que a escassez continuasse
e os stalinistas utilizaram todas as antigas divisões e formas de opressão para
manter seu poder e frear a revolução proletária internacional. Políticas
stalinistas como a de recriminalizar a homossexualidade na União Soviética, que
se refletiram em práticas discriminatórias nos partidos comunistas stalinistas
em todo o mundo, compreensivelmente afastaram da luta socialista muitos
trabalhadores e jovens que viviam sob o peso da opressão. Tais políticas não
têm nada em comum com o marxismo verdadeiro e influenciaram a divisão do
movimento em eixos separados de luta, enquanto o verdadeiro marxismo se opõe a
todas as formas de opressão e apela à unidade de classe.
A interseccionalidade, uma
ramificação do feminismo, foi na verdade uma reação contra as políticas
identitárias tradicionais que tendiam a isolar o movimento em lutas separadas.
As mulheres negras em particular destacaram por décadas que o movimento de
mulheres era amplamente dominado por mulheres brancas e de classe alta que
ignoravam a realidade e as necessidades das mulheres negras e trabalhadoras, e
que o movimento antirracismo era dominado por homens negros que muitas vezes
relevavam a opressão das mulheres – críticas muito importantes. No entanto, a
fundamentação ideológica da interseccionalidade está em teorias pós-marxistas
como o pós-modernismo e o pós-estruturalismo, teorias que ganharam popularidade
nos círculos acadêmicos precisamente em um período de reação capitalista e
colapso do stalinismo, quando as lideranças dos trabalhadores e da esquerda
abandonaram até mesmo o fingimento de estarem lutando pelo socialismo e
passaram a defender abertamente um capitalismo “mais humano”.
Enquanto a transformação
econômica e social era enfatizada no período anterior, o corpo de ideias,
pensamentos e linguagem passou a ser alvo de análise e mudança durante o
refluxo da luta de classes que se seguiu. Tendo perdido a fé na capacidade da
classe trabalhadora de transformar radicalmente as fundações econômicas e
sociais da sociedade, a esquerda acadêmica recuou para uma defesa da mudança de
como os indivíduos pensam. Herdeira dessa tendência ideológica, a
interseccionalidade defende a experiência subjetiva e o pensamento individual,
a linguagem e o comportamento como o viés pelos quais se deve entender e
superar a opressão.
Essa é uma abordagem
profundamente idealista, baseada na ideia de que para mudar a sociedade é
preciso primeiro mudar a visão das pessoas – ou ainda pior, que mudando o
“discurso” é possível transformar a realidade. A verdade é que a ideologia
dominante em uma sociedade de classes é a da classe dominante. A ideologia das
pessoas que realizam revoluções, as massas exploradas e oprimidas, está imbuída
de todas as ideias e preconceitos reacionários impostos pela classe dominante.
É durante a luta para transformar a sociedade que as pessoas (em grande
quantidade) se transformam e mudam (de maneira ampla) seus pontos de vista.
Isso é muito bem explicado por Marx em “A ideologia Alemã”:
“Tanto para a produção
massiva desta consciência comunista como para a realização da própria causa, é
necessária uma transformação massiva dos homens que só pode processar-se num
movimento prático, numa revolução; portanto, a revolução não é só necessária
porque a classe dominante de nenhum outro modo pode ser derrubada, mas também
porque a classe que a derruba só numa revolução consegue sacudir dos ombros
toda a velha porcaria e tornar-se capaz de uma nova fundação da sociedade”
Atribui-se à jurista
afro-americana Kimberlé Crenshaw a criação do termo “interseccionalidade” em
1989, especificamente para descrever como o sistema legal americano não era
capaz de responder à discriminação sofrida por mulheres negras em seu ambiente
de trabalho. Em seu artigo “Desmarginalizando a intersecção entre raça e sexo:
Uma crítica feminista negra à doutrina antidiscriminatória, à teoria feminista
e às políticas antirracistas”, Crenshaw citou diversos casos legais nos quais
os tribunais só consideravam denúncias ou de discriminação sexual ou de
discriminação racial no ambiente de trabalho, recusando-se a aceitar que
mulheres negras experimentam discriminações conjuntas, não apenas por serem
mulheres ou pessoas negras, mas enquanto mulheres negras. No caso
“DeGraffenreid x General Motors”, por exemplo, a corte rejeitou a queixa de
discriminação sexual e racial porque a General Motors havia contratado mulheres
brancas e homens negros anteriormente.
Não há qualquer argumentação
a ser feita contra a realidade de que mulheres negras e outros grupos que
experimentam discriminação conjunta passam despercebidos pelo sistema legal
capitalista. Essas são lacunas estruturais que formam uma barreira real e significativa
às camadas oprimidas da classe trabalhadora para alcançar verdadeira igualdade
de direitos. Os marxistas apoiam reformas legais que permitam o aumento da
capacidade dos trabalhadores e das camadas oprimidas da classe de lutar por
seus direitos e melhorar suas condições de vida. Mas nós também precisamos
explicar que o racismo e o sexismo estão enraizados na sociedade de classes e
nas necessidades do capitalismo, ao qual o sistema legal em última instância
existe para defender.
A natureza de classe da
justiça burguesa não pode ser reformada fora do sistema legal, uma vez que se
fundamenta sobre bases capitalistas. Enquanto a exigência de Crenshaw era para
que se criasse uma nova designação de minoria a ser protegida dentro do sistema
legal para as mulheres negras, nós devemos frisar que isso não mudaria
fundamentalmente as condições sociais e materiais que levam à discriminação
conjunta que ela habilmente destacou que elas experimentavam em seu ambiente de
trabalho e na sociedade como um todo. Embora os escritos que algumas feministas
interseccionalistas tenham contribuído com observações valorosas sobre como a
discriminação conjunta é experimentada por aqueles vivendo sob múltiplas
opressões e as barreiras que eles enfrentam, os marxistas explicam que é
preciso ir além da observação. Um número infinito de categorias poderia ser
criado dentro do sistema legal para refletir todas as possíveis intersecções de
opressões, mas enquanto marxistas devemos colocar a questão: por que essa
opressão acontece, em primeiro lugar, e como ela pode ser erradicada de uma vez
por todas?
Pensamento e realidade
social
Em uma palestra proferida em
2016 no TED Talks com o título “A urgência da interseccionalidade”, Crenshaw se
refere à incapacidade do sistema legal de abordar a dupla discriminação que as
mulheres negras enfrentam em seus ambientes de trabalhos como “um problema de
enquadramento”. A sugestão é que, se os juízes e políticos tivessem um quadro
melhor para entender a opressão e a natureza da discriminação conjunta,
indivíduos ou grupos que experimentam opressões sobrepostas não passariam
despercebidos. Atitudes discriminatórias de juízes que influenciam seus
julgamentos obviamente têm impacto nas vidas de grupos oprimidos e perpetuam
sua marginalização. Enquanto homens e mulheres negras experimentam altos
índices de abusos e assassinatos por parte de policiais que desfrutam de
impunidade, os juízes nos EUA e no Canadá diversas vezes deixaram livres homens
brancos que cometeram crimes sexuais. É evidentemente claro que os juízes têm
liberdade para agir conforme suas atitudes discriminatórias desprezíveis e que
isso serve para sustentar a opressão na sociedade e manter grupos oprimidos
subjugados. Mas de onde surgem essas atitudes e como podemos livrar a sociedade
delas?
As danosas atitudes
discriminatórias de juízes e políticos refletem as necessidades do sistema
capitalista. O estado capitalista e seu sistema legal existem para defender a
dominação e os lucros da classe capitalista. Sob esse sistema – onde representantes
da justiça não são eleitos, promessas de campanha são quebradas assim que os
políticos chegam ao poder sem opção de destituí-los e muitas das decisões mais
importantes são tomadas a portas fechadas por pessoas não eleitas (i.e.,
banqueiros e executivos) –, não há verdadeira democracia ou responsabilidade.
Da mesma maneira, no ambiente de trabalho é muito difícil responsabilizar
empregadores por práticas discriminatórias porque eles controlam nossa
subsistência e não há qualquer controle democrático na produção capitalista.
Embora processos por discriminação tenham sido defendidos arduamente e
vencidos, eles costumam levar anos nos tribunais, custos astronômicos e muitas
outras barreiras que tornam esse um caminho impossível para muitos dos trabalhadores
oprimidos, especialmente considerando o fato de que os empregadores sempre
podem pagar por uma equipe de advogados melhor e que o sistema de justiça é
sempre distorcido a favor de seus interesses. Mesmo quando os patrões recebem
penalidades, elas geralmente representam um pequeno troco para eles, enquanto a
vida de quem iniciou o processo foi jogada na lama. Portanto, embora atitudes
claramente possam desempenhar um papel pernicioso na perpetuação da opressão, é
a fundação econômica e social nas quais estas instituições se baseiam a
verdadeira barreira para a superação da opressão. Falando de outro modo, é a
natureza capitalista dessas instituições a raiz do problema, não as atitudes
dos funcionários que ocupam cargos nelas.
Portanto, para os marxistas
não se trata fundamentalmente de um problema de “enquadramento” ou de como as
pessoas pensam a opressão. A noção de que a linguagem e o pensamento são as
forças dominantes a moldar a realidade social deriva do idealismo filosófico,
enquanto os marxistas abordam a história de um ponto de vista materialista e
argumentam que é a realidade social que molda o pensamento. Nós não nascemos
com visões de mundo pré-fabricadas nem as que nós desenvolvemos com o tempo
caem do céu. O que nós aprendemos e acreditamos sobre o mundo é influenciado e
moldado pelas condições materiais e sociais do momento histórico em que nós
vivemos e pelo modo de produção que lança as bases para o modo como o restante
da sociedade é organizado. Isso não significa que todo pensamento ou elemento
cultural é um produto direto da base econômica da sociedade, mas que a base
econômica lança as fundações gerais para as visões dominantes de cada época e
estabelece determinados limites para o modo como nós pensamos.
Claro que não são somente
indivíduos em posições de poder que defendem e disseminam ideias
discriminatórias que atendem a seus próprios e mesquinhos interesses.
Trabalhadores e pessoas pobres são igualmente socializadas todos os dias com
essas atitudes. As ideias dominantes na sociedade são aquelas da classe
dominante, que sob o capitalismo é a burguesia. A classe capitalista lança mão
de atitudes discriminatórias para manter a classe trabalhadora dividida em
raças, etnias, linguagem, sexo, gênero, religião e diversas outras. Essas divisões
servem a múltiplas funções, como criar uma pressão para diminuição de salários
e uma “corrida ao topo” entre trabalhadores e nações concorrentes, evitando que
a maioria dos explorados e oprimidos se unam contra seu opressor comum, a
burguesia. A burguesia detém e controla os meios fundamentais de disseminação
de ideias, como a grande mídia e os meios culturais. As ideias da classe
dominante também são reproduzidas através da igreja, do sistema de educação e
da família. O conteúdo de nossos pensamentos é moldado por essas instituições,
as quais refletem a sociedade capitalista.
O capitalismo força a classe
trabalhadora a uma competição brutal e desumanizadora que distorce a forma como
nós nos relacionamos com nós mesmos e com os outros. As pessoas não nascem
gananciosas ou discriminatórias, mas são criadas em uma sociedade
individualista que nos coloca uns contra os outros e usa mensagens poderosas
para nos manter divididos. Mudar a forma como nós pensamos sem mudar as
condições sociais e materiais que dão base a atitudes discriminatórias é,
portanto, uma abordagem limitada para o combate à opressão.  A ênfase no pensamento e nas ideias separados
de suas origens sociais e materiais inevitavelmente resulta em um entendimento
individualista e subjetivo da opressão, destacado de suas raízes econômicas
estruturais e que cria um risco de atomização do movimento.
Em última análise, a base
material de toda divisão social é a escassez. Uma sociedade capaz de fornecer
emprego, moradia e educação a seus cidadãos não precisará culpar “outro” pela
falta de moradia, educação e emprego. Compreensivelmente, uma sociedade em
crise terá um aumento nessas atitudes. Como bem disse Marx, “quando a
necessidade é generalizada, toda a velha porcaria renasce”. Tais atitudes não podem
ser completamente erradicadas enquanto a escassez persistir. Sob o capitalismo,
a escassez é completamente artificial, uma vez que temos meios de produção tão
avançados que já possuímos riqueza e recursos mais do que suficientes para que
todos tenham um bom padrão de vida. O problema neste sistema é que a maioria da
riqueza é apropriada por uma pequena minoria e o resto de nós é deixado para
lutar pelas migalhas. É por isso que os marxistas defendem a expropriação da
classe capitalista, de forma que possamos colocar toda essa riqueza em uso para
os interesses da maioria e erradicar as raízes materiais da divisão e da
opressão.
Raízes da opressão:
subjetivas ou objetivas?
Em escritos feministas
interseccionais costuma haver referências à opressão “estrutural”, mas de um
ponto de vista idealista e não marxista, materialista.  Por exemplo, em relação às múltiplas e
interseccionais formas de opressão, Bell Hooks diz: “Para mim é como uma casa,
elas compartilham a mesma fundação, mas a fundação são as crenças ideológicas
ao redor das quais as noções de dominação são construídas”. Alinhada a essa
visão, Patricia Hill Collins afirma que “o empoderamento envolve a rejeição das
dimensões de conhecimento, sejam pessoais, culturais ou institucionais, que
perpetuam a objetificação e a desumanização”. Portanto, as raízes da opressão
são vistas como estando no sistema de crenças de uma sociedade acerca da
superioridade ou inferioridade de diferentes grupos e o fim da opressão implica
rejeitar essas crenças. A principal limitação dessa abordagem é que que ela não
oferece um meio para erradicar tais crenças em uma escala que alcance as
massas.
Ao tornar a maneira como nós
conceituamos a realidade o alvo principal de mudança, implica-se que a opressão
é perpetuada predominantemente nos níveis individuais e interpessoais. Sob esse
ponto de vista, qualquer um que não esteja experimentando determinada forma de
opressão é cúmplice em sua perpetuação e se beneficia dela. Uma vez que há
infinitas configurações de opressões sobrepostas e características dominantes,
a teoria da interseccionalidade propõe que todos nós vivemos em uma rede
infinita na qual estamos todos simultaneamente oprimindo e sendo oprimidos uns
pelos outros. A classe trabalhadora, e não a classe capitalista, se torna o
inimigo.
Embora seja óbvio que as
atitudes e comportamentos discriminatórios e opressivos são realizados por
indivíduos e dentro de dinâmicas interpessoais (que devem ser condenadas e
combatidas pelos revolucionários), essas atitudes têm origens sociais e
históricas e são enraizadas nas estruturas da sociedade de classes. Da mesma
maneira, aquilo que é considerado uma característica dominante sistematicamente
favorecida pela sociedade também se desenvolveu historicamente. A supremacia
branca e o racismo, os quais são fenômenos inerentemente sociais e estruturais,
foram desenvolvidos pela classe dominante das nações coloniais europeias para
justificar a conquista e a escravidão, sobre as quais o desenvolvimento foi
construído. A opressão às mulheres não existiu sempre, mas veio à tona com a
divisão da sociedade em classes e o estabelecimento do casamento como uma
instituição que deveria controlar a sexualidade feminina a fim de garantir a
paternidade para o propósito de passar a propriedade adiante. Atitudes racistas
e sexistas refletem esses processos sociais e materiais.
Embora indivíduos certamente
possam defender e agir de acordo com ideias discriminatórias de formas muito
danosas, essas ideias e ações em última instância beneficiam somente à classe
dominante exploradora. No entanto, o conceito de “privilégio” costuma ser
evocado no movimento por defensores da interseccionalidade para dizer que
aqueles que não são vítimas de uma forma particular de opressão têm interesse
em mantê-la sobre outras pessoas ou contribuem ativamente com ela ao receber
benefícios não merecidos. Os marxistas concordam que pessoas que são oprimidas
de maneiras múltiplas e sobrepostas experimentam maiores barreiras sociais e o
impacto de discriminações conjuntas. No entanto, coisas que normalmente são
descritas como privilégios em nossa visão deveriam ser consideradas direitos
humanos acessíveis a todos de maneira igualitária. Nós precisamos abolir o
sistema que estratifica a classe trabalhadora e priva as camadas oprimidas desses
direitos, não nos mantendo divididos e lutando pelos restos que caem da mesa
dos banqueiros e dos patrões. Nós defendemos que não se nivele por baixo e crie
uma igualdade na pobreza, mas que se nivele por cima tomando o que nós
necessitamos da classe opressora e exploradora.
A opressão de um grupo serve
para manter o sistema capitalista que explora e oprime a todos nós de
diferentes maneiras. Não é do interesse de nenhum trabalhador que a dominação e
a opressão sobre outro grupo continue. Por exemplo, é bem sabido que homens
ganham mais do que mulheres em todo o mundo pelo mesmo trabalho. No entanto, os
homens não ganham mais porque as mulheres ganham menos ou vice-versa. Há
riqueza mais do que suficiente para que todos tenham um grande aumento de salários,
mas a maioria da riqueza gerada pelos trabalhadores é apropriada pela classe
dominante minoritária. A classe capitalista se beneficia dos baixos salários e
da discriminação às mulheres trabalhadoras, imigrantes e minorias raciais e de
gênero porque, como explicado anteriormente, isso gera uma pressão para a
redução de todos os salários e força camadas da classe trabalhadora a serem
mais “flexíveis” e dispostas a aceitar empregos precários e temporários.
Os marxistas trabalham
ativamente para educar a classe trabalhadora para o fato de que não é de seu
interesse oprimir e discriminar uns aos outros. É principalmente através da
experiência concreta na luta que os indivíduos serão transformados e mudarão
suas ideias. Um trabalhador dito “privilegiado” que perpetua atitudes
discriminatórias está na verdade contribuindo para baixar seu próprio salários
através da competição de outros trabalhadores mais oprimidos e dispostos a
salários menores, o que mantém os lucros dos patrões e o sistema capitalista que
explora e oprime a todos nós. Trabalhadores que não experimentam múltiplas
opressões têm muito a perder perpetuando a opressão sobre os outros, uma vez
que isso só perpetua a sua própria exploração. Todos os trabalhadores têm o
mundo a ganhar através da união e da luta pelo socialismo, que deve permitir um
aumento massivo nos padrões de vida de todas as pessoas. Ao invés da
solidariedade de classe, a interseccionalidade propõe o conceito de “aliados”,
sugerindo que diferentes setores da classe trabalhadora e dos oprimidos têm
interesses diferentes e deveriam ter suas próprias organizações separadas. Os
marxistas defendem uma luta conjunta baseada em interesses comuns, organizada
através de sindicatos e partidos de trabalhadores socialistas e de massas que lutam
contra todas as opressões infligidas aos trabalhadores e contra a exploração de
classe – ou seja, contra todo o sistema capitalista e tudo o que ele traz
consigo.
O perigo da “política de
privilégios” é que ela leva ativistas a tentarem convencer setores da classe
trabalhadora de que eles na verdade se beneficiam da opressão contra outras
camadas da classe trabalhadora e, portanto, têm interesses opostos a elas, em vez
de explicar que é do interesse de todos nós a união contra a classe
capitalista. Isso cai como uma luva na mão dos capitalistas, que tentam
ativamente perpetuar esse mito e usam o racismo, o sexismo e outras formas de
opressão e discriminação para justificá-lo. Quando trabalhadores
“privilegiados” e oprimidos se unem contra os patrões e reivindicam pagamentos
e condições de trabalhos iguais, o poder dessa unidade permite a todos os
setores arrancar mais conquistas da classe exploradora.
A opressão e a discriminação
de algumas camadas da classe trabalhadora também servem como um bode expiatório
conveniente para a classe dominante. Quando o capitalismo está em crise, a
classe dominante e seus representantes no estado culpam esse ou aquele grupo
oprimido e marginalizado, tentando nos colocar uns contra os outros. Quando as
pessoas estão lutando para sobreviver e nenhum alternativa genuinamente de
esquerda é apresentada, essas ideias podem ganhar terreno. Isso ficou
claramente demonstrado nas eleições americanas: uma vez que Bernie Sanders foi
tirado do páreo, Donald Trump pôde chegar ao poder destilando sentimentos
racistas, misóginos e xenófobos sobre uma camada de trabalhadores frustrados
(notavelmente, apenas 25% da população de fato votou nele) que via Hillary
Clinton como representante do sistema. Pesquisas sugerem que um grande número
desses trabalhadores poderia ter sido ganho através de uma plataforma de
esquerda que atacasse a “classe bilionária” em vez de usar grupos oprimidos
como bode expiatório. Aqueles que votaram em Trump não nasceram opressores ou
discriminatórios, mas receberam essas ideias como explicação para sua própria
pobreza e dificuldade de vida. Esse é um exemplo concreto de como atitudes
discriminatórias estão enraizadas nas estruturas da sociedade de classes e
reforçadas pela escassez, a pobreza e a frustração com o sistema capitalista,
especialmente quando a esquerda é incapaz de fornecer uma alternativa real.
Não é difícil imanar o
quanto menos terreno as ideias discriminatórias iriam ganhar se todos tivessem
um alto padrão de vida com acesso universal à educação profissional e superior,
creches, saúde, transporte, moradia, lazer, cultura etc. No entanto, isso não é
possível sob o capitalismo, pois ele se baseia na produção para o lucro em vez
de para as necessidades humanas. É preciso uma luta de classes conjunta para
unificar todas as camadas dos oprimidos no combate contra o sistema capitalista
que explora e oprime a todos nós.
A luta de classes e o
combate contra a opressão
Os marxistas são contra a
divisão das pessoas em diferentes eixos de opressão e defendem a necessidade da
unidade. A luta de um grupo oprimido não pode ser entendida separadamente de
outras formas de opressão e do sistema capitalista que dá base a elas. Mesmo quando
os defensores da interseccionalidade criticam a divisão das pessoas em eixos
unitários, o resultado dessa abordagem subjetivista é a divisão das pessoas de
acordo com uma infinitude de configurações de opressões e privilégios
conjuntos, sem um denominador comum entre eles. É isso que sugere a acadêmica e
teórica do feminismo interseccional Patricia Hill Collins em seu livro
“Pensamento feminista negro: Conhecimento, consciência e a política do
empoderamento” (1990), quando afirma que “a matriz abrangente da dominação
abriga diversos grupos, cada um com diferentes experiências com desvantagens e
privilégios que produzem perspectivas parciais correspondentes… Nenhum grupo
tem um ângulo de visão claro. Nenhum grupo detém a teoria ou a metodologia que
permita descobrir a ‘verdade’ absoluta”.
Essa visão é bastante
pessimista, deixando-nos apenas com nossas realidades subjetivas parciais e
nada que explique as origens da opressão ou como superá-las de uma vez por
todas. Esse é um ponto de vista que leva ao individualismo e à
autocontemplação, em vez de uma luta conjunta para transformar a realidade. O
mundo existe de maneira concreta fora de nossos pensamentos e sentimentos.
Nosso entendimento desse mundo é necessariamente parcial e individual, mas
ainda assim permanece como o reflexo de uma realidade objetiva e nossas ideias
sobre essa realidade são constantemente testadas na prática ao agirmos nela. O
conjunto de relações econômicas e sociais que formam o capitalismo existem
objetivamente. Se alguém não acredita, é só ver o que acontece se não trabalhar
para viver ou pagar o aluguel. Devido ao fato que de a grande maioria de nós
vive sob o capitalismo e é explorada por ele, a análise da luta de classes
representa o melhor “ângulo de visão” e a maior ferramenta teórica em direção à
unidade e à conquista da emancipação para todos.
Enquanto a
interseccionalidade enxerga todas as formas de opressão como igualmente
fundamentais, os marxistas destacam que a classe é a divisão fundamental na
sociedade capitalista. O modo de produção capitalista é baseado, em sua
essência, na extração da mais-valia dos trabalhadores pelos donos dos meios de
produção, os capitalistas. Isso não significa que a exploração de classe seja a
pior forma de opressão em termos de sofrimento ou que a classe trabalhadora é
de alguma forma superior a outros grupos oprimidos. O que isso significa é que
enquanto vivermos em uma sociedade onde uma classe dominante parasitária
explora e oprime a maioria, nenhum grupo oprimido poderá jamais ser genuinamente
emancipado uma vez que sempre haverá desigualdade sistemática. Qualquer
representante da classe dominante minoritária, independentemente de seu gênero,
raça ou orientação sexual, em última análise servirá aos seus interesses de
classe, os quais se baseiam na divisão e opressão da maioria de nós.
Os imensos lucros acumulados
pela classe capitalista representam o trabalho não-pago da classe trabalhadora,
que não recebe o valor completo de seu trabalho. É isso que os marxistas querem
dizer com exploração de classe – não confundir com “classismo”, que se refere à
discriminação de pessoas pobres como se fossem de uma classe inferior em vez de
fruto de uma relação econômica. Enquanto os marxistas reconhecem o papel
significativo da discriminação e da opressão na manutenção do sistema
capitalista, a realidade econômica da exploração coloca os trabalhadores em uma
posição única para derrubar o sistema, uma vez que são eles que produzem toda a
riqueza na sociedade. Além disso, embora nem todos os trabalhadores
experimentem opressões sobrepostas, a grande maioria dos oprimidos são
explorados enquanto trabalhadores, marginalizados, desempregados ou vivem em
escravidão moderna. Isso torna a exploração de classe o fator unificador de
todos os oprimidos. A classe trabalhadora abarca a grande maioria das camadas
oprimidas da sociedade e é precisamente a luta de classes que pode unir todas
as camadas de oprimidos contra nosso inimigo comum, a classe exploradora, e
destruir todas as atitudes discriminatórias pelo caminho.
Infelizmente, muitos líderes
de movimentos estudantis e dos trabalhadores falharam em organizar uma luta de
classes ativa que possa unir todas as camadas dos oprimidos. Enquanto isso,
esses mesmos burocratas costumam adotar a linguagem da interseccionalidade para
mascarar a realidade de que eles não estão lutando por reformas significativas
que melhorem as condições de vida dos estudantes e dos trabalhadores. Políticas
simbólicas como paridade de gênero e outras cotas identitárias são empregadas
sem qualquer consideração à visão de classe ou orientação política, o que na
verdade resulta em algumas poucas posições de vantagem para meia dúzia de
burocratas que não estão comprometidos em mobilizar uma luta por condições que
iriam aliviar a opressão e a exploração para a maioria dos que compõem sua base
e também para a sociedade em geral. A classe dominante usa políticas
semelhantes para tentar acalmar os oprimidos enquanto deixam seu sistema de
exploração intacto. Não é preciso olhar muito longe, basta acessar os
principais sites de bancos que exibem a diversidade de seus empregados. A
representatividade de grupos oprimidos em bancos e grandes empresas não muda a
realidade para a maioria das camadas oprimidas da classe trabalhadora. Sem que
se mude as condições materiais que dão base à opressão, a representatividade em
nossas organizações estudantis e sindicatos também não será capaz de mudar essa
realidade.
A ideia por trás da
“representatividade” é a de que se mais pessoas de grupos oprimidos estivessem
em posições de poder (como representantes eleitos em organizações de estudantes
e trabalhadores ou em cargos políticos, bem como presidentes e diretores de
empresas do setor privado etc.) isso ajudaria a erradicar ou aliviar sua
opressão. É importante entender que os grupos oprimidos não são oprimidos por
serem mal representados; eles são mal representados por causa da opressão
sistemática na sociedade, que cria barreiras para a participação na vida
pública e na política. A melhor maneira de alcançar verdadeira
representatividade dos grupos oprimidos no movimento é criar organizações
políticas de luta que realmente possam começar a erradicar essas barreiras como
parte da luta pelo fim dessas opressões. Isso iria entusiasmar camadas mais
amplas de grupos historicamente marginalizados e oprimidos a se unirem e lutar
para superar as barreiras sistemáticas que impediram sua participação. Tal luta
irá encorajar o desenvolvimento de lideranças genuínas a partir da base, em vez
de ações meramente simbólicas a partir de cima. O socialismo se trata
precisamente de trazer todas as camadas dos explorados e oprimidos para a luta
por um mundo melhor. Nossos representantes devem ser eleitos com base em sua
política e capacidade para liderar uma verdadeira luta.
As eleições de mulheres como
Margaret Thatcher, Angela Merkel, Theresa May e Hillary Clinton para alguns dos
mais altos cargos políticos existentes não serviu para fazer avançar a causa da
emancipação feminina e os revolucionários fizeram e têm feito campanhas constantes
contra elas. O mesmo pode ser dito, por exemplo, da diretora do FMI, Christine
Lagarde, e a lista só cresce. Da mesma maneira, os padrões de vida dos negros
americanos continuaram a cair no governo Obama. Como revolucionários, nós
apoiaríamos um político de esquerda com qualquer um dos nomes mencionados, não
importa sua orientação sexual, gênero, raça ou etnia. A representatividade é
uma arma poderosa nas mãos da classe dominante uma vez que é usada para criar
ilusões e incentivar o apoio a líderes que representam os interesses do
capitalismo simplesmente por causa de sua raça, orientação sexual, gênero etc.,
em vez de seus interesses de classe.
Membros da classe dominante
como Hillary Clinton chegaram a adotar a linguagem da interseccionalidade para
conquistar apoio. Deve-se dar crédito a Crenshaw e outras defensoras da
interseccionalidade por condenarem essa atitude e destacarem que, uma vez que
“mulher” não é uma categoria homogênea, Hillary não representa os interesses de
todas as mulheres devido a suas posições imperialistas. No entanto, o fato de
que a interseccionalidade não tem como alvo as raízes da opressão significa que
em última análise ela não é uma ameaça à classe capitalista e seus aliados
reformistas, motivo pelo qual eles podem tão facilmente adotar sua linguagem em
um esforço de parecer mais progressistas. Não é uma ameaça aos membros da
classe dominante destacar que existem múltiplas e sobrepostas formas de
opressão, contanto que não se questione por quê e por quais interesses. Há uma
razão pela qual as “Hillary Clintons” deste mundo não adotam a linguagem
marxista da necessidade de união de todas as camadas oprimidas na luta de
classes e na superação do capitalismo.
Reforma ou revolução?
Isso significa que os
marxistas sugerem que as pessoas e grupos experimentando múltiplas camadas de
opressões deveriam colocar suas lutas em segundo plano em nome da luta de
classes e que nada pode ser feito para combater ou aliviar a opressão até que
haja uma revolução socialista? De maneira nenhuma. Os marxistas se mantêm
firmes contra toda forma de opressão e discriminação aqui e agora e lutam com
unhas e dentes contra atitudes divisionistas e discriminatórias no movimento e
em toda a classe trabalhadora, uma vez que só servem aos interesses da classe capitalista.
Os marxistas vão além e destacam que não se pode mudar ideias em massa sem que
se mudem suas origens materiais, ou para dar nomes aos bois, a escassez e a
competição. Essa é uma das razões pelas quais os marxistas participam na luta
cotidiana por reformas e as conectam com a necessidade do socialismo.
Uma vez que as reformas
nunca são dadas de boa vontade pela classe dominante sem que haja luta, a
melhor maneira de conquistar qualquer reforma é através da ação coletiva,
militante e de massas a partir de baixo que faça os patrões e os políticos
tremerem de medo da revolução. A luta contra a opressão e por qualquer reforma
que a alivie não deve ser de responsabilidade apenas do grupo que experimenta a
forma particular de opressão ou discriminação em questão, mas deve envolver
toda a classe trabalhadora, abarcando todos os grupos oprimidos. Trabalhadores
homens e heterossexuais têm total interesse em defender os direitos das
mulheres e LGBTs, os trabalhadores brancos devem se juntar à luta contra o racismo,
e assim por diante. Nossa força está em nossa união e a vitória de qualquer
camada da classe trabalhadora é uma vitória para toda a classe e todos os
oprimidos.
É através da união para a
luta de classes que as massas começam a aprender sobre a força de sua união e
sobre os limites do capitalismo para fornecer melhorias significativas para
suas vidas. Se nós olharmos para o mundo hoje veremos claramente que novas reformas
não estão na ordem do dia. Ao contrário, os trabalhadores e pessoas oprimidas
em todos os lugares estão lutando para manter os direitos humanos mais básicos
e as vitórias do passado. Portanto, enquanto lutamos por reformas que possam
aliviar a opressão e melhorar as condições de vida da classe trabalhadora,
explicamos que nenhuma reforma é sustentável sob o capitalismo e suas crises
sistêmicas. Para que conquistar melhorias permanentes, elas precisam ser
combinadas com a luta pela transformação socialista da sociedade.
Quando os lucros são
ameaçados e o capitalismo entra em crise, os patrões, os banqueiros e seus
amigos no estado não hesitam em revogar tudo pelo qual nós lutamos e
conquistamos no passado. Isso também tende a levar a um aumento no racismo e em
outras formas de preconceito, uma vez que populistas de direta e setores da
mídia apontam os dedos para vários grupos oprimidos como culpados pelos cortes
e medidas de austeridade. A única maneira de manter as conquistas do passado,
lutar contra atitudes opressoras hoje e avançar para uma sociedade
verdadeiramente igualitária é por um fim à produção pelo lucro de forma que as
imensas riquezas e recursos já existentes possam ser colocados democraticamente
em uso para o interesse da maioria.
A transformação
revolucionária da sociedade
Isso não significa que as
atitudes discriminatórias vão desaparecer da noite para o dia após uma
revolução socialista. A opressão em suas diversas formas tem existido por
gerações e em alguns casos por milhares de anos, deixando sua marca na
consciência da raça humana. No entanto, um movimento de massa tem um profundo
impacto na consciência uma vez que as pessoas venham a enxergar umas às outras
a partir de suas semelhanças e interesses comuns em vez de enxergarem umas às
outras a partir de suas diferenças, como concorrentes. É muito mais difícil
defender atitudes discriminatórias contra mulheres, imigrantes ou pessoas LGBT
quando elas estão nas ruas lutando pelo mesmo que você, colocando suas vidas em
risco. Durante greves de trabalhadores torna-se claro que eles não têm qualquer
interesse em discriminar uns aos outros, uma vez que isso só iria acabar com a
greve. Durante movimentos de massa esse entendimento é alcançado em uma escala
de massas.
Um forte exemplo recente foi
a Revolução Egípcia de 2011 que levou à queda de Hosni Mubarak. Embora as
mulheres no Egito tenham experimentado historicamente altos níveis de
discriminação e violência e cristãos e muçulmanos tenham se envolvido em
conflitos sangrentos por décadas, homens e mulheres de todas as origens
religiosas se uniram na Praça Tahrir. Pensamentos discriminatórios e
estereótipos acerca de grupos oprimidos foram deixados de lado em prol da luta
contra um opressor comum. Embora a Revolução Egípcia ainda não tenha superado o
capitalismo, ela é apenas uma amostra do que pode ocorrer em escala
generalizada através de uma revolução socialista e do esforço coletivo para
construir uma nova sociedade.
Transformando-se
radicalmente as fundações sociais e econômicas da sociedade a partir do
socialismo, as raízes estruturais e econômicas da opressão serão erradicadas.
Sem uma classe exploradora minoritária produzindo em nome do lucro, não haveria
qualquer razão social ou material para que a maioria se dividisse e
estratificasse em sexo, gênero, orientação sexual, capacidades físicas, raça,
idioma, religião ou qualquer outra categoria. Quando nós deixarmos de ser
obrigados a competir por emprego, educação, vagas em creches, comida, água e moradia,
a forma como nos relacionamos uns com os outros irá mudar de maneira
fundamental.
Lideranças democraticamente
eleitas e revogáveis a qualquer momento, assim como supervisão democrática dos
processos de contratação, podem servir para prevenir práticas discriminatórias
nos locais de trabalho. A propriedade e o controle coletivo e democrático da
mídia e das instituições educacionais desempenharão um grande trabalho no
combate a atitudes discriminatórias na sociedade e na garantia de que a bela
diversidade humana seja ensinada e celebrada. Mudando a fundação socioeconômica
da sociedade levaria a uma mudança profunda na visão de mundo e nas atitudes
das massas.
Os marxistas costumam ser
criticados por terem uma solução pré-moldada e imposta de cima para baixo a
todos os problemas. Ao contrário, a revolução socialista se trata de pessoas
comuns tomando seus destinos em suas próprias mãos e construindo uma nova
sociedade para si mesmas. Os marxistas procuram guiar as massas em direção à
superação bem-sucedida do capitalismo e ao estabelecimento de uma sociedade
socialista, criando uma fundação econômica e social em que a desigualdade, a
opressão e a exploração não tenham mais suas bases materiais. A partir daí,
grupos historicamente oprimidos terão a oportunidade e os recursos que precisam
para satisfazer suas necessidades únicas surgidas após sucessivas gerações de
opressão e discriminação. Sobre essas bases de verdadeira igualdade social, as
pessoas poderão começar a se relacionar umas com as outras em um nível
fundamentalmente mais verdadeiro e humano; através da construção de uma nova
sociedade, uma nova consciência coletiva se tornará possível.
[1] “Chega de esperar”, em
tradução livre, é um movimento indígena canadense nascido em dezembro de 2012 e
que luta contra ataques por parte do governo e das casas legislativas contra os
povos originários.
Artigo publicado em 13 de
julho, no site da Corrente Marxista Internacional (CMI), sob o título de
“Marxism vs. Intersectionality“. Originalmente publicado no site da seção
canadense da CMI, Fightback Canada.
Tradução Felipe Libório.
 
 
 
Comentários
Postar um comentário